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Espírito Indomável

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Não tive oportunidade de pedir a permissão do escritor para postar esse texto aqui. Mas considerando que foi um presente de aniversário para minha pessoa, acredito que ele não se importará.

Danne, tu és um anjo. Não tem idéia do quanto gostei desse texto. O melhor presente que tu poderia ter me dado. Obrigada.


Fiquem agora com um conto do...




Espírito Indomável

No meio da noite um vento gelado entrou pelo quarto do palácio, afastando as cortinas, deslizando sorrateiro pelo chão, até chegar aos ouvidos do Rei. Uleandro acordou, mas não abriu os olhos. Já sabia o que era aquilo. Nos últimos setenta anos ainda não houvera uma noite sequer em que não tivesse sido tocado por aquele vento. Era o Sussurro de Rhor, um agouro maligno vindo do passado, palavras de morte que, por motivos infames, foram jogadas sobre aquele reino, e que, felizmente, ainda não haviam se cumprido. O Rei as desafiou em pensamentos, mas as que vieram em seguida foram piores, e petrificaram o seu coração. Ele engoliu-as em seco, deslizou sua mão pelos lençóis de cama e, ainda com os olhos fechados, tocou o braço da Rainha, que despertou mas não disse nada. Mesmo depois de setenta anos, aquelas palavras continuavam a assustar mais do que uma guerra, pois a esta altura um final para a Casa-de-Uleandro significava a morte de milhares de pessoas, e sangue inocente derramado é uma coisa impossível de aceitar para um Rei.

Na manhã seguinte, mais do que nos outros dias, o castelo estava cheio de gente. Indo e vindo, seresteiros, repentistas, bailarinos, palhaços, atores e mágicos eram apresentados às dependências do castelo, nas quais se hospedariam pelos próximos dez dias. Eles vinham de muitos lugares, e todos, à exceção dos palhaços, estavam ali para fazer os preparativos para a festa que a rainha encomendara. Seria um acontecimento histórico, era o que todos diziam, pois não se via uma festa assim desde a última Farra, e isso significa vinte e dois anos. Não era para menos. Tratava-se do casamento da Princesa Cher, a segunda filha de Uleandro, que uniria a sua casa a Casa-de-Lótus, e daria ao seu povo um horizonte muito maior para conhecer e amar. Cher estava radiante e nervosa. Passava os dias inteiros no seu quarto, lendo almanaques de casamento, treinando as palavras na frente do espelho, e sonhando com seu futuro esposo, o Príncipe Sancho. Queria que tudo fosse perfeito, assim como fora para sua irmã mais velha, Ana, que casara meses antes e partira para as montanhas do Oeste, de onde só se ouviam notícias felizes.

Entretanto, uma sombra de tristeza pairava sobre seu coração da princesa, e às vezes a perturbava a ponto de fazê-la chorar de medo. O caso é que quando o Rei anunciara seu casamento também prometera que na mesma festa apresentaria sua filha mais nova, Débora, aos príncipes do Litoral. Cher tinha receio de que todo esse alarde não fosse por causa do seu matrimônio, e sim porque sua irmã finalmente daria seu primeiro baile de pretendentes. E de fato seu temor tinha fundamentos, já que a beleza de Débora era assunto constante nas rodas de fofocas da sociedade. Poucas pessoas haviam-na conhecido, mas isso fora suficiente para se criar lendas ao seu respeito, e muito se falava sobre a sua personalidade singular. Débora era arisca, soturna, falava pouco, e gostava de passear sozinha pelas montanhas, onde decifrava os sussurros do vento e aprendia a conversar com os pássaros. Não tinha interesse por bailes, e sempre fugia quando o assunto era casamento. É necessário dizer, porém, que um dia lhe passou pela cabeça que casar significava no mínimo ir embora de Rudão, e isso era tudo o que ela queria, ir para os confins do mundo, em algum lugar ermo, onde pudesse brandir uma espada e retesar seu arco sem ser incomodada por alguma regra idiota da sociedade, daquelas que dizem que as pessoas não podem fazer o que querem porquê é feio.

Num certo dia de chuva, a Rainha, Daia de Aluanda, cuja história será contada mais tarde, foi até o quarto de Débora para discutir o vestido que usaria no baile, e ensiná-la alguns truques de mulher, para que conseguisse fisgar o coração do maior número de rapazes possível. Mas quando abriu a porta ela não estava lá. As cortinas estavam abertas, e uma corda tosca estava jogada por cima da varanda. Logo Daia deduziu que sua filha havia descido por ali, e foi até o jardim procurá-la. E lá ela estava, pisando descalça no chão de terra molhada como se fosse um felino, sem fazer barulho. Carregava pedaços de madeira para algum lugar misterioso, e quando foi surpreendida pela mãe tomou um susto e jogou-os para o alto, atingindo uns galhos e fazendo cair o orvalho.

- O que você está fazendo? – perguntou a Rainha.
- Oi mãe... – Débora sorriu sem graça.

Daia então começou a caminhar pelo jardim, e em pouco tempo descobriu um pequeno monte de madeira, que estava empilhado detrás de um tronco de qüerco. Débora ficou sem graça e tentou desviar a atenção da sua mãe para a quantidade de estrelas que havia no céu, mas não funcionou. Daia a encarou curiosa e perguntou o que ela estava pretendendo. Enrubescida, a princesa respondeu que construiria um navio, e sorriu. A Rainha ficou perplexa, mas desconfiou que aquilo fosse só mais uma das estranhices de sua filha, e reparou que o céu estava mesmo impressionante. Milhões de pontos luminosos reluziam no firmamento, como se lá alguém estivesse a festejar o dia mais feliz da sua vida.

– É mesmo lindo.
– Eu queria poder tocar essas estrelas.

A rainha então se aproximou da sua filha, abraçou-a e disse ao seu ouvido:

– Débora, espírito indomável.
– Mãe – sussurrou Débora – lembra quando havia um riacho que passava aqui no jardim?
– Sim, sim. Você ainda era uma criança, e adorava brincar aqui. Ninguém podia com você... Mas porque lembrou disso agora?
– Eu sinto falta daquele riacho.
A noite já estava quente, mas o ar ainda cheirava a água. Todas aquelas estrelas tinham surgido depois de três dias tempestuosos como há muito não se via. Antigamente costumava-se dizer em Rudão que três dias seguidos de chuva era um péssimo presságio: significava a iminência de uma guerra. Débora, que era nova demais para saber dessas coisas, vira da sua varanda a chuva cair até criar pequenos lagos no sopé da montanha e depois transformá-los em riachos caudalosos, que na sua intermitência mais pareciam eternos. O som da correnteza ecoava na sua mente, atormentando-a com lembranças. Débora tomou a mão da rainha e a levou até um banquinho que ficava perto da fonte. Lá deitou no seu colo e repetiu:

– Eu sinto muita falta daquele riacho...
– E eu sinto falta daquele tempo, quando te pegava no colo assim, desse jeito, e te contava histórias, contos-de-fada, e depois cantava para você dormir.

Então Débora virou-se e encarou sua mãe, e por um momento aquilo foi como olhar num espelho e perceber que seu reflexo está anos mais velho, e já não sonha mais para si, apenas para os outros.

Quando a Princesa dizia que sentia falta daquele riacho, não era apenas saudosismo. Tratava-se de algo maior e mais íntimo. Na sua infância, todos os dias ela descia até aquele jardim para brincar na beira do riacho com as suas irmãs, ou com suas primas. Lá aprendera a nadar, e os peixes eram seus amigos e não fugiam à sua presença. Eram dias alegres aqueles. Acordar e dormir com o barulho da correnteza, nadar até a foz e se deixar levar pela água... O riacho era como uma parte sua, e se separar dela significava o mesmo que ser mutilada. Mas um dia, num jantar no castelo de Rudão, os reis do Oeste começaram a discutir sobre quem teria o maior jardim, e Uleandro ficara perturbado ao descobrir que o seu era apenas o terceiro. Ora, se ele tinha o maior reino, obviamente deveria ter também o maior jardim. “Que disparate!” Foi assim que o Rei teve a idéia de construir um dique na nascente do rio, e desviar seu curso para os lençóis das grutas de Belfalas. Chamou seus melhores engenheiros e fez todo esse trabalho em menos de um dia. A pequena Débora, que dormia logo ao lado, acordou sobressaltada, pois de uma hora para outra tudo havia silenciado. Então foi até a varanda e lá de cima viu o que havia acontecido. Desesperada correu para a torre e desceu os degraus aos saltos, até que chegou até o jardim e parou, no lugar onde passava o rio, e ficou petrificada. Não havia mais riacho. Só os peixes, todos mortos. Não havia mais nada. Depois disso Débora chorou por dias, sem saber porque o riacho havia ido embora. Chorou e chorou, até perceber que ele não voltaria.

– Sabe mãe, – disse a princesa – outro dia o Mestre Pião estava dando aula lá no pátio, e eu ouvi-o dizer que todos os rios vão para o mar. Se isso for mesmo verdade é para lá que quero ir. Quero encontrar com o meu riacho novamente.
..

[continua...]
Escrevinhado por Daniel Magalhães no dia Primeiro de fevereiro de 2009 às 20:58