Alice era uma garota comum. Adolescente, no alto de seus dezesseis anos, rosto bem delineado, olhos amendoados castanho-claros (ou "cor-de-mel”, como gostava de dizer), cabelos lisos meio aloirados, talvez clareados pelos banhos-de-sol que costumava tomar todas os dias em seus breves passeios matinais. Carregava consigo um semblante, de certa forma, pesado que sutilmente denunciava seu constante ar de tristeza. Nada sabia sobre o seu pai, exceto o que sua mãe sempre fazia questão de contar: ele desapareceu sem deixar vestígios poucos dias após o seu nascimento. Alice dividia, então, com sua mãe, uma pequena casa no Paraíso (logo veremos que não é bem assim). Bom, em todo caso, me refiro ao modesto bairro de classe média na Zona Sul de São Paulo.
Às sete da manhã, Alice sempre lembrava que o lugar onde morava talvez não merecesse o nome que tinha. Nunca tinha visto tantas ladeiras em um lugar só. Um verdadeiro inferno! Cruzou o portão com cuidado, observando o desnível entre o batente e a calçada. Já havia tropeçado ali antes algumas dezenas de vezes. Só depois pôde lançar-se à rua impetuosamente. Alice começava assim a sua saga diária rua abaixo. O asfalto ainda frio lhe parecia ainda mais escuro naquele dia após a chuva torrencial da noite anterior. Sentiu o chão escorregadio e percebeu que os buracos na pista ficavam mais evidentes quando preenchidos pela água acumulada na madrugada que passou. O aspecto íngreme daquela rua dificultava ainda mais sua descida. Sentiu medo de cair.
Alice dirigiu-se rapidamente à calçada, a qual subiu com bastante dificuldade. “Como ninguém nunca percebeu quão altas elas são?” – ela sempre se indagava em pensamento. Seguiu em direção à estação de metrô. No caminho sentiu a brisa leve e fria das manhãs de junho cortando seu rosto. Gostava daquela sensação. Ao longo do seu trajeto, observava o comportamento das pessoas. Alice adorava bisbilhotar o movimento dentro das padarias, onde sempre aconteciam discussões fervorosas sobre futebol ou alguma notícia vinda das páginas policiais do jornal. Notou que a cada metro que percorria algumas pessoas lhe fitavam com um ar de prontidão gratuita, como se todos fossem velhos conhecidos.
Chegou à estação às oito, uma hora depois de sair de casa. Tinha pavor de encarar as escadas de acesso à plataforma de embarque. Ela sabia exatamente o porquê. Alguns minutos depois, conseguiu chegar sã e salva à Avenida Paulista, não sem antes dizer “muito obrigada” a pelo menos 5 pessoas diferentes. Seguiu adiante, sempre olhando para o chão. Cantarolava enquanto observava atentamente cada paralelepípedo a sua frente. Tinha mania de atribuir valores numéricos aos mesmos. Os mais limpos e bem polidos sempre valiam mais. Os quebrados, soltos e espalhados pela calçada não tinham valor algum para ela. Visto que atrapalhavam o seu “bem caminhar”, deviam valer pontos negativos, ela achava.
Com muito custo, às dez e meia parou em frente a uma galeria. Já tinha ouvido falar de uma excelente livraria que acabara de ser inaugurada por ali. Estava ansiosa por conhecê-la. O acesso à mesma era composto por uma imponente escadaria de mármore branco, maciço, ligeiramente chuviscado por pingos pretos que formavam desenhos interessantes. Possuía degraus altos que remetiam à entrada dos grandes palácios do conjunto arquitetônico romano. Por ali passavam diariamente centenas de pessoas e, algumas delas, se aproveitavam da estrutura da bendita escada para repousar, bater papo ou apenas sentar e acompanhar o movimento. Alice ficou ali, estática, perante aquela escadaria. Enquanto isso, mais e mais pessoas subiam e desciam, num movimento frenético e alucinado, comum nas grandes metrópoles. Alice já havia escolhido o livro a ser comprado, mas ainda continuava ali. E, dessa forma, continuou por mais longos vinte minutos. Até que, finalmente, deu meia-volta em sua cadeira de rodas e decidiu, mais uma vez, retornar a sua casa.
Às sete da manhã, Alice sempre lembrava que o lugar onde morava talvez não merecesse o nome que tinha. Nunca tinha visto tantas ladeiras em um lugar só. Um verdadeiro inferno! Cruzou o portão com cuidado, observando o desnível entre o batente e a calçada. Já havia tropeçado ali antes algumas dezenas de vezes. Só depois pôde lançar-se à rua impetuosamente. Alice começava assim a sua saga diária rua abaixo. O asfalto ainda frio lhe parecia ainda mais escuro naquele dia após a chuva torrencial da noite anterior. Sentiu o chão escorregadio e percebeu que os buracos na pista ficavam mais evidentes quando preenchidos pela água acumulada na madrugada que passou. O aspecto íngreme daquela rua dificultava ainda mais sua descida. Sentiu medo de cair.
Alice dirigiu-se rapidamente à calçada, a qual subiu com bastante dificuldade. “Como ninguém nunca percebeu quão altas elas são?” – ela sempre se indagava em pensamento. Seguiu em direção à estação de metrô. No caminho sentiu a brisa leve e fria das manhãs de junho cortando seu rosto. Gostava daquela sensação. Ao longo do seu trajeto, observava o comportamento das pessoas. Alice adorava bisbilhotar o movimento dentro das padarias, onde sempre aconteciam discussões fervorosas sobre futebol ou alguma notícia vinda das páginas policiais do jornal. Notou que a cada metro que percorria algumas pessoas lhe fitavam com um ar de prontidão gratuita, como se todos fossem velhos conhecidos.
Chegou à estação às oito, uma hora depois de sair de casa. Tinha pavor de encarar as escadas de acesso à plataforma de embarque. Ela sabia exatamente o porquê. Alguns minutos depois, conseguiu chegar sã e salva à Avenida Paulista, não sem antes dizer “muito obrigada” a pelo menos 5 pessoas diferentes. Seguiu adiante, sempre olhando para o chão. Cantarolava enquanto observava atentamente cada paralelepípedo a sua frente. Tinha mania de atribuir valores numéricos aos mesmos. Os mais limpos e bem polidos sempre valiam mais. Os quebrados, soltos e espalhados pela calçada não tinham valor algum para ela. Visto que atrapalhavam o seu “bem caminhar”, deviam valer pontos negativos, ela achava.
Com muito custo, às dez e meia parou em frente a uma galeria. Já tinha ouvido falar de uma excelente livraria que acabara de ser inaugurada por ali. Estava ansiosa por conhecê-la. O acesso à mesma era composto por uma imponente escadaria de mármore branco, maciço, ligeiramente chuviscado por pingos pretos que formavam desenhos interessantes. Possuía degraus altos que remetiam à entrada dos grandes palácios do conjunto arquitetônico romano. Por ali passavam diariamente centenas de pessoas e, algumas delas, se aproveitavam da estrutura da bendita escada para repousar, bater papo ou apenas sentar e acompanhar o movimento. Alice ficou ali, estática, perante aquela escadaria. Enquanto isso, mais e mais pessoas subiam e desciam, num movimento frenético e alucinado, comum nas grandes metrópoles. Alice já havia escolhido o livro a ser comprado, mas ainda continuava ali. E, dessa forma, continuou por mais longos vinte minutos. Até que, finalmente, deu meia-volta em sua cadeira de rodas e decidiu, mais uma vez, retornar a sua casa.
7 comentários:
Ual digo! Excelente texto!
8 de abril de 2009 às 12:59Estou sem palavras...
Excelente mesmo...
espero que a Alice nunca vá à Perdizes! lá as ladeiras são bem impossíveis, acho que todos os paralelepípedos teriam valor zero. mas tbm, lá de bom só tem a PUC. o Paraíso q é mais hot spot deveria ser melhor equipado.
8 de abril de 2009 às 13:17mas enfim, na livraria cultura tem uma rampa!!
Digo, gostei muito do texto, principalmente dos pequenos detalhes tipo a chuva nos buraquinhos do cimento. isso é meio amelie poulain.
eu tenho essa mania de contar os paralelepípedos, inclusive com as restrições de alice. :D
8 de abril de 2009 às 13:21muito bom o texto, gostei da mensagem e da forma que foi passada.
"Tinha mania de atribuir valores numéricos aos mesmos. Os mais limpos e bem polidos sempre valiam mais. Os quebrados, soltos e espalhados pela calçada não tinham valor algum para ela. Visto que atrapalhavam o seu “bem caminhar”, deviam valer pontos negativos, ela achava."
8 de abril de 2009 às 14:08cara, eu costumo dizer que personagens precisam de manias estranhas, de aspectos peculiares, para parecerem vivos. Não sei se tu já viu um filme chamado 'Amelie Poulain' (se não, está indicado), mas ele fala uma coisa parecida em relação à vida: o que há de mais belo está nos detalhes, nas sensações e nos olhares.
Especificamente, o final me surpreendeu bastante. Ela estava andando até aquele momento, subindo e descendo ladeira, e não tinha nada de etão special. Mas, ao revelar a sua condição, foi como se - perdoe-me o paradoxo - ao sentar-se na cadeira, Alice de repente ficasse de pé. Ela cresceu nas últimas linhas, e disso eu gostei pra caralho.
Valeu, champs! Texto foda da gota!
AUIHEUAHEUHA!!
8 de abril de 2009 às 14:09cabei de ver que já tinham falado da Amelie Poulain ali em cima.
--'
puxe minhas orelhas, rodrigo !
8 de abril de 2009 às 17:28Puxa! Com meu papito, minha profe e vc digga, postando textos assim, eu até to repensando se devia mesmo ter aceito o convite da debs pra fazer parte desse grupo! É muita responsa pro tico e teco!
9 de abril de 2009 às 18:42Parabéns,o texto é ótimo!
=***
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